Vamos recordar este tema tão importante para as carreiras policiais e concursos públicos:
O STF, em julgado paradigmático (tese de repercussão geral), decidiu sobre a entrada forçada em domicílio:
“A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas “a posteriori”, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados. STF. Plenário. RE 603.616/RO, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 4 e 5/11/2015 (repercussão geral – Tema 280) (Info 806).”
Atentem-se para a expressão “fundadas razões” (que não se confunde com “fundada suspeita” para busca pessoal). Trata-se de conceito jurídico indeterminado, devendo ser interpretado de acordo com o caso concreto. Neste sentido, o STJ vem decidindo casuisticamente o que seria essas “fundadas razões”, invalidando diversas prisões em flagrante e gerando muitos debates na comunidade jurídica, principalmente nos casos envolvendo o tráfico de drogas, crime de natureza permanente.
Traremos uma tabela de Rodrigo Foreaux sobre a diferença entre “fundada suspeita” e “fundadas razões” para elucidar o tema:

Colacionaremos a seguir algumas decisões do STJ para melhor elucidar o tema, separando em dois grupos:
1. Decisões que o STJ NÃO autorizou o ingresso em domicílio:
- Tráfico de drogas na frente de casa não autoriza invasão sem mandado (STJ. 6ª Turma, HC 611.918/SP, Rel. Min. Nefi Cordeiro, j. em 14/09/2020);
- Fama de traficante não justifica invasão de casa sem mandado (STJ. 5ª Turma, RHC 126.092/SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. em 30/06/2020);
- Sem investigação, invasão de domicílio causada por cão farejador é ilegal (STJ. 6ª Turma, HC 566.818/RJ, Rel. Sebastião Reis Júnio, j. em 04/05/2020);
- Perseguição a veículo e fuga do indivíduo para dentro da casa não justifica invasão policial de domicílio (STJ, 6ª Turma, HC 561.360/SP, Rel. Sebastião Reis Júnior, j. em 02/04/2020);
- Denúncia anônima e fuga da polícia não justificam invasão de domicílio (STJ. 5ª Turma, HC 89.853/SP, Rel. Ribeiro Dantas, j. em 02/03/2020);
- Abordagem em quintal da residência não legitima ingresso forçado, ainda que um dos abordados empreenda fuga para dentro da residência e com o outro agente sejam encontradas drogas (STJ. 6ª Turma, HC 586.474/SC 2020/0131639-8, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, j. em 18/08/2020).
- Tentativa de fuga do agente ao avistar policiais entrando em sua residência não autoriza a invasão de domicílio (STJ. 6ª Turma, HC 435.465/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, j. em 09/10/2018);
- Mera intuição acerca de eventual traficância praticada pelo paciente não autoriza ingresse em seu domicílio (mas, autoriza a abordagem policial), (STJ. 6ª Turma, HC 415.332/SP, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. em 16/08/2018);
- É ilegal a invasão domiciliar por policiais, quando embasada em denúncia-anônima e a visualização de pessoas manipulando drogas no interior da residência (STJ. 6ª Turma, AgRrg no REsp 1.865.363/SP, Rel. Antônio Saldanha Palheiro, j. em 22/06/2021);
- A abordagem do agente, em local conhecido como ponto de tráfico, ainda que com ele encontre drogas, não autoriza o ingresso na residência (STJ. 6ª Turma, HC 611.918/SP, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, j. em 07/12/2020).
- Encontro de drogas no bolso da bermuda do réu e a existência de mandado de prisão não autorizam a entrada no domicílio do réu sem autorização judicial (STJ. 6ª Turma, HC 660.841/SP, Rel. Min. Antônio Saldanha Palheiro, j em 14/10/2021).
- A indução do morador a erro na autorização do ingresso em domicílio macula a validade da manifestação de vontade e, por consequência, contamina toda a busca e apreensão. (STJ, 6ª Turma, HC 674.139/SP, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. em 15/02/2022).
2. Decisões que o STJ AUTORIZOU o ingresso em domicílio:
- Apartamento que não revela sinais de habitação, nem mesmo de forma transitória ou eventual e fundada suspeita que o imóvel é utilizado para prática de crime permanente, autoriza o ingresso policial (STJ. 5ª Turma. HC 588.445/SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. em 25/08/2020 – Info 678);
- É idônea a invasão domiciliar sem mandado judicial, quando os policiais sentirem forte odor de maconha aliado ao nervosismo do agente (STJ. 6ª Turma, HC 423.838/SP, Rel. Sebastião Reis Júnior, j. em 18/12/2017);
A prova da legalidade e da voluntariedade do consentimento para o ingresso na residência do suspeito incumbe, em caso de dúvida, ao Estado, deve ser feita com declaração assinada pela pessoa que autorizou o ingresso domiciliar, indicando-se, sempre que possível, testemunhas do ato. Em todo caso, a operação deve ser registrada em áudio-vídeo e preservada a prova enquanto durar o processo (STJ. 6ª Turma. HC 598.051/SP, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, julgado em 02/03/2021 – Info 687);Acórdão anulado pelo STF no RE 1.342.077/SP, Rel. Min. Alexandre de Moraes, decisão em 02/12/2021.- Se presentes as fundadas razões que sinalizem a ocorrência de crime e hipótese de flagrante delito, é lícita a entrada de policiais em quarto de hotel que não é usado como morada permanente, mesmo sem autorização judicial e sem consentimento do hóspede (STJ. 6ª Turma, HC 659.527/SP, Rel. Rogério Schietti Cruz, j. em 20/04/2021).
Note-se que há algumas decisões que parecem conflitar ontologicamente, pois o STJ já validou ingresso na residência quando o policial sente forte odor da droga, aliado ao nervosismo do agente, mas em outro julgado a Corte invalidou a entrada em domicílio no quando o agente visualizou a droga sendo manipulada no interior da residência. Por isso, há professores que satirizaram tais antagonias, alguns nominando-as de “Teoria da Prevalência dos Cincos Sentidos Humanos” e outros de “Paradoxo dos Sentidos” (Enzo Bassetti).
Standarts Probatórios ou Modelos de Constatação
É necessário entender todo o conjunto fático e probatório que ensejaram as decisões do STJ.
Essa análise decorre dos chamados “standarts probatórios”, que segundo Gustavo Badaró “são critérios que estabelecem o grau de confirmação probatória necessário para que o julgador considere um enunciado fático como provado”. Correspondem assim aos níveis de provas exigidos nas diferentes espécies de processos judiciais.
A ideia subjacente aos standards probatórios é a de que cada processo, em razão das particularidades que lhe são ínsitas – como seus procedimentos, os bens jurídicos envolvidos e as garantias asseguradas –, possui um nível de provas próprio. Portanto, o STJ vem disciplinando quais seriam os standarts probatórios que autorizariam o ingresso forçado em domicílio, dando forma ao conceito jurídico indeterminado “fundadas razões”. Entretanto, a Corte Cidadã vem sofrendo duras críticas doutrinárias, alegando-se falta de coesão em suas decisões, o que acaba culminando em uma enorme insegurança jurídica para os atores da persecução penal extra judicium, sempre sujeitos a responder criminalmente por eventual abuso de autoridade.
Abuso de Autoridade
Por fim e não menos importante, vamos relembrar o crime de invasão de domicílio previsto na Lei de Abuso de Autoridade – 13.869/19:
“Lei 13.869/19. Art. 22. Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
§ 1º Incorre na mesma pena, na forma prevista no caput deste artigo, quem:
I – coage alguém, mediante violência ou grave ameaça, a franquear-lhe o acesso a imóvel ou suas dependências;
II – (VETADO);
III – cumpre mandado de busca e apreensão domiciliar após as 21h (vinte e uma horas) ou antes das 5h (cinco horas).
§ 2º Não haverá crime se o ingresso for para prestar socorro, ou quando houver fundados indícios que indiquem a necessidade do ingresso em razão de situação de flagrante delito ou de desastre.”
Não se deve olvidar que para a configuração dos crimes da Lei de Abuso de Autoridade devem estar presentes uma das finalidades específicas previstas no artigo 1º, § 1º da referida lei:
“Lei 13.869/19, § 1º As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.”