Boate Kiss – Julgamento

No dia 10/12/2021, após 10 dias de julgamento, foi prolatada a sentença do Tribunal do Júri condenando todos os réus pelo concurso formal de 242 crimes de homicídio simples, praticados com dolo eventual, e 636 tentativas de homicídio, conforme segue: 

Elissandro Spohr, sócio da boate:22 anos e seis meses de prisão por homicídio simples com dolo eventual. 

Mauro Hoffmann, sócio da boate:  19 anos e seis meses de prisão por homicídio simples com dolo eventual. 

Marcelo de Jesus, vocalista da banda:  18 anos de prisão por homicídio simples com dolo eventual. 

Luciano Bonilha, auxiliar da banda: 18 anos de prisão por homicídio simples com dolo eventual. 

Questão interessante que se coloca diz respeito ao “quantum” da pena aplicada na sentença condenatória, que variou entre 18 e 22 anos de reclusão. Considerando que foram 242 mortes e 636 pessoas feridas, por que as penas foram estipuladas em uma quantidade tão baixa?  

A resposta é simples, pois no caso analisado houve o que se denomina de concurso formal próprio ou perfeito de crimes, situação em que há uma conduta (comissiva ou omissiva) resultando em uma pluralidade de resultados. Diante do concurso formal próprio, não haverá a soma das penas, devendo o magistrado adotar o sistema da exasperação, ou seja, aplicar a pena do crime mais grave e exasperá-la na proporção determinada em lei, conforme art. 70, 1ª parte, do Código Penal: 

Concurso formal 

“CP, Art. 70 – Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior.” 

Conclusão 

O Juiz presidente fixou a pena base do homicídio simples e, na sequência, aumentou de 1/6 até 1/2 devido ao concurso formal próprio ou perfeito, atribuição que lhe é conferida pelo art. 492 e seguintes do CPP. 

Execução Provisória e habeas corpus preventivo 

O pacote anticrime introduziu a alínea “e” no inciso I do artigo 492 do CPP, de questionável constitucionalidade, tratando da “execução provisória” em condenações no júri das quais a pena seja igual ou superior a 15 anos de reclusão, vejamos: 

CPP, artigo 492.  Em seguida, o presidente proferirá sentença que: 

I – no caso de condenação: 

e) mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ouno caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos.” 

Na nossa obra sobre o pacote anticrime, defendemos a impossibilidade da “execução provisória” da pena, em especial diante do princípio constitucional da presunção de inocência, confira: 

“(…), entendemos que não deveria haver diferença substantiva entre o processo que julga o crime doloso contra vida e o processo que julga outro delito igualmente grave, a exemplo do latrocínio e da extorsão mediante sequestro com resultado morte, os quais se vinculam a penas em abstrato até maiores do que as do homicídio. 

O próprio pacote anticrime equipara o tratamento dado, em certos casos, aos condenados por fatos criminosos envolvendo crimes hediondos com resultado morte, colocando-os em posições idênticas, por exemplo ao vedar as saídas temporárias a todos os que cumprem pena por praticar crime hediondo com resultado morte (vide o art. 122 da Lei de Execuções Penais). 

Portanto, não parece inadequado se pugnar pelo uso da mesma fórmula para todos os casos semelhantes. Daí, se a regra geral vigente não permite o cumprimento antecipado de pena, defendemos tal impossibilidade em desfavor de todos os réus (admitindo-a apenas quando for favorável ao condenado), mesmo nos casos dos crimes dolosos contra a vida.” (grifo nosso) 

Retomando o caso analisado, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul concedeu a ordem de habeas corpus preventivo, sendo recebida pelo juiz presidente do júri em favor de um dos réus, o que fez suspender a execução da pena de todos. 

Na jurisprudência, a 6ª Turma do STJ, no HC 649.103/ES, de relatoria do Ministro Antônio Saldanha Palheiro, em agosto deste ano, afastou a execução antecipada de pena por condenação no júri. Vejamos um trecho da ementa:  

“Assim, apesar dos fundamentos apresentados na sentença e no acórdão proferido em habeas corpus, a jurisprudência desta Corte superior entende ser indevida a execução provisória das penas, ainda que em condenação, proferida pelo Tribunal do Júri, igual ou superior a 15 anos de reclusão, por violação ao princípio da presunção de inocência previsto no art. 5º, LVII, da Constituição Federal.” Decisão semelhante foi tomada pela 5ª Turma do STJ no HC 501.788/SP. 

Detalhe importante 

Existem decisões no âmbito da Suprema Corte em sentido contrário, ou seja, afirmando pela constitucionalidade da norma (STF. 1ª Turma. HC 198392 AgR, Rel. Roberto Barroso, julgado em 27/04/2021). 

Ocorre que o próprio STF reconheceu a tese como de repercussão geral – tema 1068 (RE 1.235.340/SC), na qual se discute a constitucionalidade da execução provisória da pena. O recurso encontra-se pendente de julgamento, mas é relevante trazer à baila trecho do voto do então Ministro Gilmar Mendes, consentâneo com o nosso entendimento: 

“A Constituição Federal, levando em conta a presunção de inocência (art. 5º, inciso LV), e a Convenção Americana de Direitos Humanos, em razão do direito de recurso do condenado (art. 8.2.h), vedam a execução imediata das condenações proferidas por Tribunal do Júri, mas a prisão preventiva do condenado pode ser decretada motivadamente, nos termos do art. 312 do CPP, pelo Juiz Presidente a partir dos fatos e fundamentos assentados pelos Jurados” e, ao final, declarava a inconstitucionalidade da nova redação determinada pela Lei 13.964/2019 ao art. 492, I, e, do Código de Processo Penal, pediu vista dos autos o Ministro Ricardo Lewandowski.” 

A seguir, realizaremos uma análise com olhar criminológico sobre o caso. 

Os jurados acolheram a tese da acusação no sentido de que os réus praticaram homicídios com “dolo eventual”. Com o devido acatamento, discordamos juridicamente de tal decisão.  

De tudo que foi noticiado, não parece crível que os réus tenham agido com indiferença quanto ao resultado morte de mais de 240 vítimas.  

O dolo eventual, previsto no Código Penal em seu art. 18, inciso I, 2ª parte, caracteriza-se quando o agente empreende a conduta assumindo o risco de produzir o resultado. Deriva da teoria do assentimento, segundo a qual, há dolo quando o agente assente ou aceita a possibilidade de ocorrência do resultado com indiferença. 

A teoria positiva do conhecimento, formulada por Reinhart Frank, é o critério prático para constatação do dolo eventual. Segundo essa teoria, há dolo eventual quando o agente pensa consigo mesmo: “sendo deste ou daquele jeito, ainda assim atuarei”, numa clara demonstração de indiferença à possibilidade de ocorrência do resultado. 

A nosso sentir, o conselho de sentença deveria ter desclassificado o crime, reconhecendo a figura culposa por parte dos agentes, cabendo ao juiz presidente proferir a sentença nesses moldes, conforme estabelece o art. 492, § 1º do CPP. 

Revisemos a diferença entre dolo eventual e culpa consciente: 

Dolo Eventual Culpa Consciente 
O agente prevê o resultado, mas o aceita, tolera que ocorra.  Há indiferença em relação ao resultado possível. O agente prevê o resultado, mas não o aceita, não o tolera, acreditando sinceramente que pode evitá-lo com suas habilidades ou sorte. 

Note que não estamos defendendo impunidade, mas a aplicação da nossa legislação. Ficou evidente que o julgamento deixou de lado a técnica jurídica e se arvorou na dor das perdas e no clamor público, reflexo direto da emocionalização produzida pela mídia. Na nossa obra de criminologia, abordamos o tema da seguinte forma:  

“Assim, não raras vezes a mídia propaga uma ideia preconceituosa e seletiva sobre o sistema penal e sobre o criminoso, criando uma espécie de populismo penal midiático, ou punitivismo popular, que, dentre outras consequências, acarreta o denominado Direito Penal de Emergência (…) A mídia deforma a opinião da população e a distancia das informações elementares para o correto exercício de seus direitos democrático (…)Em acréscimo, a dramatização e emocionalização dos crimes constitui fenômeno que pode estimular um tipo de punição ostensiva e emotiva, e conduzir ao linchamento midiático dos suspeitos, à condenação sumária dos criminosos, à descrença no sistema penal e à promoção do populismo punitivo.” 

Podemos aqui estabelecer uma convergência do caso com a “criminologia midiática” defendida por Eugênio Raul Zaffaroni, devido à comunicação produzida pela mídia no que se refere a fatos criminosos, propagando-se um discurso neopunitivista.  

Percebe-se, no caso da Boate Kiss, que o que se julgou foi a “dor” e as perdas inestimáveis dos familiares, e não juridicamente os réus, gerando-se uma vontade punir a qualquer custo. 

Por fim, embora entendamos ter havido uma dissociação entre a decisão dos jurados e a técnica jurídica no que diz respeito aos elementos subjetivos da conduta (dolo/culpa), não se pode perder de vista que o júri é eminentemente marcado pela teatralidade, centrada na emoção e no convencimento dos jurados. Com efeito, o conselho de sentença não se limita a analisar o aspecto jurídico do fato (o Direito), mas julga a própria tragédia e as consequências nefastas dela decorrentes, independentemente dos conceitos jurídicos imanentes.  

Obras utilizadas na construção do texto: 

FONTES, Eduardo. HOFFMAN, Henrique. Carreiras Policiais – Pacote Anticrime. Salvador: Editora JusPodivm, 2020, p. 138-140. 

FONTES, Eduardo; HOFFMAN, Henrique. Carreiras Policiais: Criminologia. 4 ed. rev., atual. e ampl. Salvador: Editora JusPodivm, 2021, p. 311 e 312. 

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