Sobre o caso
Em 17 de junho de 1998, na cidade de João Pessoa, Estado da Paraíba, aproximadamente às 19 horas, Márcia Barbosa de Souza recebeu uma ligação do então deputado estadual da Paraíba Aércio Pereira de Lima e, posteriormente, saiu para encontrar-se com ele. De acordo com o apurado, às 21 horas, no Motel Trevo, foi realizada uma ligação a partir do telefone celular utilizado por Aércio Pereira de Lima a um número de telefone residencial na cidade de Cajazeiras. Durante a ligação Márcia Barbosa de Souza conversou com várias pessoas e uma delas inclusive falou com o senhor Pereira de Lima.
Na manhã de 18 de junho de 1998 um transeunte observou que alguém estava retirando o corpo de uma pessoa, posteriormente identificada como Márcia Barbosa de Souza, de um veículo em um terreno baldio no bairro Altiplano Cabo Branco, próximo da cidade de João Pessoa/PB. Quando o corpo foi encontrado, Márcia Barbosa de Souza apresentava escoriações na região frontal, nasal e labial. Seus lábios, nariz e dorso apresentavam hematomas de tom azul-violáceo e seu corpo tinha vestígios de areia. Durante a autópsia revelou-se que a cavidade cranial, torácica abdominal e o pescoço apresentavam hemorragia interna e, como causa de morte, foi determinada a asfixia por sufocamento, resultante de uma ação mecânica. O perito médico-legal que examinou o cadáver determinou que a senhora Barbosa havia sido agredida antes de morrer e sofrido uma ação compressiva no pescoço, ainda que esta não tenha sido a causa da morte.
A denúncia do Ministério Público imputou como autor dos delitos de “homicídio duplamente qualificado” e ocultação de cadáver ao então deputado estadual Aércio Pereira de Lima, que conhecia à suposta vítima desde novembro de 1997. Segundo sua própria declaração, aliada a uma prova testemunhal, o senhor Aércio Pereira de Lima tinha em seu poder o veículo utilizado para a ocultação do cadáver da vítima.
Márcia Barbosa de Souza era uma estudante afrodescendente de vinte anos de idade, residente na cidade de Cajazeiras, no interior do Estado da Paraíba, no Nordeste do Brasil.
O entendimento da Comissão IDH sobre o caso
Em 11 de julho de 2019, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) apresentou à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) o Caso 12.263 – Márcia Barbosa de Souza e familiares, relativo ao Brasil.
O caso refere-se à responsabilidade do Estado pelos eventos relacionados à morte de Márcia Barbosa de Souza, em junho de 1998, pelas mãos de um ex-deputado estadual, o Sr. Aércio Pereira de Lima, bem como pela situação de impunidade em que o evento se encontra.
A Comissão concluiu que:
i) a imunidade parlamentar, nos termos definidos na norma interna” provocou um atraso no processo penal de caráter discriminatório;
ii) o prazo de mais de 9 anos que durou a investigação e [o] processo penal pela morte de Márcia Barbosa de Souza resultou em uma violação à garantia de prazo razoável e uma denegação de justiça;
iii) não foram sanadas as deficiências probatórias e nem foram esgotadas todas as linhas de investigação, sendo a situação resultante incompatível com o dever de investigar os fatos com a devida diligência; e
iv) o assassinato de Márcia Barbosa de Souza, resultante de um ato de violência, somado às falhas e atrasos nas investigações e no processo penal, violaram a integridade psíquica de seus familiares.
Sentença da Corte IDH
A Corte Interamericana é competente para conhecer o presente caso, nos termos do artigo 62.3 da Convenção Americana, em virtude de que o Brasil é Estado Parte deste instrumento desde 25 de setembro de 1992 e reconheceu a competência contenciosa deste Tribunal em 10 de dezembro de 1998. Outrossim, o Estado do Brasil ratificou a Convenção de Belém do Pará em 27 de novembro de 1995.
A Corte IDH prolatou sentença em 7 de setembro de 2021, responsabilizando o Brasil por violações de direitos às garantias judiciais, à igualdade perante a lei e à proteção judicial, com relação às obrigações de respeitar e garantir direitos sem discriminação e ao dever de adotar disposições de direito interno e com a obrigação de atuar com a devida diligência para prevenir, investigar e sancionar a violência contra a mulher.
Isso, como consequência da aplicação indevida da imunidade parlamentar em benefício do principal responsável pelo homicídio da senhora Barbosa de Souza, da falta de devida diligência nas investigações realizadas sobre os fatos, do caráter discriminatório em razão de gênero de tais investigações, assim como da violação do prazo razoável.
A Corte as aplicou as seguintes medidas para o Estado brasileiro:
- Esta Sentença constitui per se uma forma de reparação.
- O Estado realizará as publicações indicadas no parágrafo 176 desta Sentença, no prazo de seis meses contados a partir de sua notificação.
- O Estado realizará um ato de reconhecimento de responsabilidade internacional em relação aos fatos deste caso, nos termos dos parágrafos 177 e 178 desta Sentença.
- O Estado elaborará e implementará um sistema nacional e centralizado de recopilação de dados que permita a análise quantitativa e qualitativa de fatos de violência contra as mulheres e, em particular, de mortes violentas de mulheres, nos termos do parágrafo 193 da presente Sentença.
- O Estado criará e implementará um plano de formação, capacitação e sensibilização continuada para as forças policiais responsáveis pela investigação e para operadores de justiça do Estado da Paraíba, com perspectiva de gênero e raça, nos termos do parágrafo 196 da presente Sentença.
- O Estado levará a cabo uma jornada de reflexão e sensibilização sobre o impacto do feminicídio, da violência contra a mulher e da utilização da figura da imunidade parlamentar, nos termos do parágrafo 197 da presente Sentença.
- O Estado adotará e implementará um protocolo nacional para a investigação de feminicídios, nos termos dos parágrafos 201 e 202 da presente Sentença.
- O Estado pagará as quantias fixadas nos parágrafos 212 e 218 da presente Sentença a título de compensação pelas omissões nas investigações do homicídio de Márcia Barbosa de Souza; de reabilitação; indenização por dano material e dano imaterial, e reembolso de custas e gastos, nos termos dos parágrafos 224 a 229 da presente Decisão.
- O Estado reembolsará ao Fundo de Assistência Jurídica de Vítimas da Corte Interamericana de Direitos Humanos a quantia despendida durante a tramitação do presente caso, nos termos dos parágrafos 223 e 229 desta Sentença.
- O Estado, dentro do prazo de um ano contado a partir da notificação desta Sentença, apresentará ao Tribunal um relatório sobre as medidas adotadas para cumprir a mesma, sem prejuízo do estabelecido no parágrafo 176 da presente Sentença.
- A Corte supervisionará o cumprimento integral desta Sentença, no exercício de suas atribuições e em cumprimento de seus deveres conforme a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, e dará por concluído o presente caso uma vez que o Estado tenha dado cabal cumprimento ao disposto na mesma.
Redigida em espanhol em San José, Costa Rica, por meio de uma sessão virtual, em 7 de setembro de 2021.