No dia 23/12 o portal “G1” publicou a notícia de que uma mulher de 60 anos foi vítima de um golpe na cidade de Curitiba/PR ao pagar uma viagem de UBER realizada por sua cunhada. Consta que a vítima realizou uma corrida e ao chegar em seu destino o motorista exigiu que o pagamento fosse efetuado no débito, no valor de R$ 7,90, dizendo ser regra da empresa. A vítima assim o fez, embora não tenha conseguido visualizar na tela da máquina de cartão o real valor que havia sido digitado pelo motorista, pois estava com o visor quebrado. Logo depois, a vítima recebeu uma mensagem do banco indicando que havia saído de sua conta o valor de R$ 4.115,00, o equivalente ao seu salário mensal.
Faremos uma análise jurídica sobre esse caso.
Quanto a tipificação penal, trata-se de furto mediante fraude ou estelionato?
Essa é uma questão tormentosa para muitos concurseiros.
O furto mediante fraude não se confunde com o estelionato. Conforme explicamos em nossas obras, nessa modalidade de furto a fraude envolve um ardil ou artifício para diminuir a vigilância da vítima para com a coisa, de modo a facilitar a subtração. A vítima não entrega a coisa ao agente. Se assim ocorrer, há estelionato. No furto, a vontade de modificar a posse é, exclusivamente, do “furtador”. Já no estelionato, a posse é desvigiada e o sujeito passivo entrega a coisa ao agente de forma espontânea. Nesse crime, imperam duas vontades, a da vítima e a do criminoso.
Em resumo, no furto qualificado há subtração do bem sem que a vítima perceba; no estelionato ocorre a entrega espontânea (embora viciada) do bem pela vítima ao agente.
Aliás, outro não é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:
Embora esteja presente tanto no crime de estelionato, quanto no de furto qualificado, a fraude atua de maneira diversa em cada qual. No primeiro caso, é utilizada para induzir a vítima ao erro, de modo que ela própria entrega seu patrimônio ao agente. A seu turno, no furto, a fraude visa burlar a vigilância da vítima, que, em razão dela, não percebe que a coisa lhe está sendo subtraída” (CC 86.862/GO, rel. Min. Napoleão Maia Nunes Filho, 3.a Seção, j. 08.08.2007).
Diante disso, entendemos que o crime a ser imputado ao motorista do aplicativo é o de furto mediante fraude. Com efeito, o agente fez uso de artifício para subtrair valores da vítima. O expediente fraudulento consistiu em apresentar uma máquina de cartão com visor quebrado, reduzindo a vigilância sobre os valores existentes em sua conta corrente. Note que a avaria da tela a impossibilitou de visualizar a quantia que efetivamente estava sendo retirada de sua conta bancária. Trata-se, portanto, de subtração e não de entrega espontânea de valores.
Nova qualificadora
Com o advento da Lei nº 14.155, de 2021, foi inserida uma nova qualificadora ao crime de furto mediante fraude, quando cometido por meio de dispositivo eletrônico ou informático. Confira o texto legal:
CP, Art. 155, § 4º-B. A pena é de reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa, se o furto mediante fraude é cometido por meio de dispositivo eletrônico ou informático, conectado ou não à rede de computadores, com ou sem a violação de mecanismo de segurança ou a utilização de programa malicioso, ou por qualquer outro meio fraudulento análogo.
Repare que o patamar de pena é ligeiramente maior do que a qualificadora já existente de furto mediante fraude (art. 155, §4º, II do CP – reclusão de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa).
Em síntese, o motorista de aplicativo, praticou, em tese, o crime de furto mediante fraude cometido por meio de dispositivo eletrônico ou informático (CP, art. 155, § 4º, B), uma vez que a vítima desconhecia o real valor que estava sendo debitado de sua conta.
Vamos aproveitar o tema para abordar alguns pontos relevantes sobre a figura do estelionato.
Em geral, a doutrina costuma distinguir artifício de ardil da seguinte maneira:
Artifício: é a fraude material, onde o agente se vale de um objeto (como um uniforme, um crachá) para enganar a vítima. Ex.: veste-se de mecânico para se apossar do veículo da vítima.
Ardil: é a fraude moral, onde há uma conversa enganosa, em que a vítima é ludibriada. Ex.: sujeito se diz especialista em consertar relógios e se apossa do da vítima.
Julgamos estéril tal distinção, pois o legislador faz uso de uma cláusula genérica ao final (“qualquer meio fraudulento”).
Qualquer meio fraudulento: trata-se de interpretação analógica, pois o legislador, após lançar mão de uma fórmula casuística (artificio, ardil), utiliza uma cláusula genérica, que abrange toda e qualquer forma de enganar e ludibriar, como com o uso de documentos falsos.
De qualquer forma, o que se deve ter em mente é que, no estelionato, a fraude é elementar do tipo penal, sendo usada como meio de obter o consentimento da vítima, que entrega voluntariamente o que o agente deseja.
Causa de aumento de pena (vítima idosa ou vulnerável)
Recentemente, a Lei nº 14.155/2021 também alterou o § 4º do art. 171 do Código Penal.
CP, Art. 171, § 4º – A pena aumenta-se de 1/3 (um terço) ao dobro, se o crime é cometido contra idoso ou vulnerável, considerada a relevância do resultado gravoso. (Redação dada pela Lei nº 14.155, de 2021)
Note que estamos diante de uma majorante em branco, pois a incidência do aumento de pena depende de conceitos que precisam ser buscados em outra(s) norma(s).
Por isso, não se confunde uma norma penal incriminadora em branco com majorante em branco, porquanto nesta o complemento não influi na existência da respectiva infração penal, mas apenas no rigor da sanção a ser aplicada (dosimetria da pena).
E, no caso do parágrafo 4º, consideramos a referida majorante em branco como homovitelina e também heterovitelina. Eis a razão pela qual o professor Adriano Costa e eu optamos por denominá-la majorante em branco homogênea híbrida ou mista.
Isso porque a compreensão do termo “idoso” é extraída de outra lei, no caso a Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), que logo em seu art. 1º esclarece que idoso é a pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos. Nesse aspecto, pode ser classificada como majorante em branco homogênea heterovitelina (o complemento emana da mesma fonte legislativa, mas de lei extrapenal).
Já o conceito de vulnerável deve ser retirado do art. 217-A do CP, o qual abrange o menor de 14 anos, ou que por enfermidade ou deficiência mental não tem o necessário discernimento, a afetar sua capacidade de livremente celebrar um negócio jurídico patrimonial. Nesse caso, como o complemento encontra-se na mesma lei (Código Penal), constitui majorante em branco homogênea homovitelina (lei penal sendo complementada pela própria lei).
Evidentemente, essas circunstâncias gravosas (vítima idosa ou vulnerável) devem ser de conhecimento do autor, sob pena de responsabilidade penal objetiva.
Mas o que se entende por relevância do resultado gravoso?
Antes de indicar os percentuais de aumento, a lei usou a expressão “considerada a relevância do resultado gravoso”. O legislador não trouxe qualquer definição, cabendo à doutrina e à jurisprudência tal encargo. Defendemos que a melhor interpretação parece ser a que utiliza a gravidade do resultado como parâmetro de navegação entre o patamar mínimo e máximo de aumento, e não como condição de incidência da majorante. Isso significa que o tão só fato de se tratar de vítima idosa ou vulnerável implica na incidência do aumento, que será mínimo ou máximo conforme o prejuízo efetivamente causado. Essa é a leitura feita em outras majorantes e qualificadoras semelhantes (ex: crime de perseguição – art. 147-A, §1º, I do CP).
Ação penal
Inspirado no princípio da mínima intervenção penal, o Pacote Anticrime modificou a natureza da ação penal no crime de estelionato, que passou a ser, como regra, pública condicionada à representação do ofendido.
Pode causar estranheza o fato de o legislador não ter estendido idêntica construção aos outros delitos patrimoniais, os quais, inclusive, possuem penas mais brandas que o estelionato (apropriação indébita simples, furto simples). Parece-nos, no entanto, que esse abrandamento acerca da indisponibilidade da ação penal está ligado a 2 motivos: (a) ao constrangimento da vítima em relatar a fraude sofrida aos órgãos de investigação; (b) ao fato de ser comum que o ofendido também tenha agido de má-fé, movido pela ganância, já que a torpeza bilateral não desconfigura o delito.
Nessa esteira, sem retirar o caráter ilícito do fato, passa o ordenamento jurídico a dificultar a aplicação da pena de prisão para o estelionato, na medida em que será impossível instaurar inquérito policial sem a representação da vítima (art. 5º, § 4º, do CPP), do mesmo modo em que a ação penal não poderá ter início sem o atendimento de tal requisito (art. 24 do CPP).
As exceções foram estampadas no § 5º do art. 171 do CP. O legislador estabeleceu que a ação penal deixa de ser pública condicionada se a vítima for:
a) a Administração Pública, direta ou indireta;
b) criança ou adolescente;
c) pessoa com deficiência mental; ou
d) maior de 70 anos ou incapaz.
Cuidado!!!
Como visto, aumenta-se a pena de 1/3 ao dobro se for praticado contra idoso, considerada a relevância do resultado gravoso (art. 171, § 4ª, CP). No entanto, a ação penal só será pública incondicionada se o idoso for maior de 70 anos (art. 171, § 5º, IV, CP).
Idade da vítima no momento do estelionato | Entre 60 e 70 anos | Maior que 70 anos |
Majorante (art. 171, § 4º) | Aplicável | Aplicável |
Ação penal (art. 171, § 5º) | Ação penal pública condicionada à representação | Ação penal pública incondicionada |
Sobre a alteração da ação penal no crime de estelionato, pertinente é a crítica que fazemos em nossa obra:
“Como regra, o legislador reduziu a proteção ao direito de propriedade de vítimas de golpes, fraudes e afins. Em geral, a vítima sente-se envergonhada por ter caído na armação engendrada pelo estelionatário, de modo que, no mais das vezes, sequer comunica o fato às instâncias oficiais de controle. Isso, por si só, já gerava significativa cifra negra, a qual, será agravada pela maior leniência do legislador penal com golpistas e fraudadores. Um aspecto nocivo da cultura de malandragem, de parcela dos brasileiros, terminou sendo positivado para abranger a todos.”
Norma mais favorável (lei penal no tempo)
A representação do ofendido assume contornos de condição de procedibilidade da persecução penal e apresenta potencial extintivo da punibilidade. Por isso, possui natureza dúplice: processual e penal, sendo tal alteração passível de aplicação retroativa por ser mais benéfica ao réu.
Discute-se, no entanto, qual seria o alcance dessa retroatividade. Tem prevalecido o entendimento de que a retroatividade da representação deve se restringir à fase policial, sem afetar os processos em curso. Se já havia denúncia oferecida quando da entrada em vigor da nova lei, não será necessária representação do ofendido. Quisesse a lei exigir manifestação de vontade da vítima durante o processo, teria demandado expressamente, como ocorreu em outra alteração legislativa (Lei 9099/95). Esse entendimento jurisprudencial resguarda a segurança jurídica e o ato jurídico perfeito, quando já oferecida a denúncia (STJ, 3ª Seção. HC 610.201/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 24/03/2021; STF. 1ª Turma. HC 187341, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 13/10/2020).
Competência para processo e julgamento
A Lei nº 14.155/2021 também promoveu alterações na competência do crime de estelionato.
“CPP, art. 70, § 4º Nos crimes previstos no art. 171 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), quando praticados mediante depósito, mediante emissão de cheques sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado ou com o pagamento frustrado ou mediante transferência de valores, a competência será definida pelo local do domicílio da vítima, e, em caso de pluralidade de vítimas, a competência firmar-se-á pela prevenção.”
Recentemente, o STJ entendeu que a nova lei tem natureza processual, de forma que deve ser aplicada de imediato, alcançando inclusive fatos ocorridos antes de sua entrada em vigor, quando estes casos estejam em fase de inquérito policial (STJ, 3ª Seção. CC 180.832/RJ, Rel. Min. Laurita Vaz, j. em 25/08/2021 – Info 706).
Vejamos as últimas questões relacionadas com esses crimes:
CESPE / CEBRASPE – 2021 – PC-AL – Agente de Polícia – Prova Anulada
Acerca dos crimes patrimoniais, julgue o item seguinte.
Comete crime de furto mediante fraude o agente que utiliza de um artifício ou ardil para retirar a vigilância da vítima e conseguir pegar a res furtiva. (correta)
CESPE / CEBRASPE – 2021 – MPE-AP – Promotor de Justiça Substituto
Segundo o entendimento do STJ, a realização de saques indevidos na conta corrente de uma pessoa sem o seu consentimento, por meio da clonagem do cartão e da senha, caracteriza
A – estelionato.
B – falsidade ideológica.
C – apropriação indébita.
D – furto mediante fraude.
E – conduta atípica.
CESPE – 2020 – MPE-CE – Promotor de Justiça de Entrância Inicial
Joaquim, com o intuito de fornecer energia elétrica a seu pequeno ponto comercial situado em via pública, efetuou uma ligação clandestina no poste de energia elétrica próximo a seu estabelecimento. Durante dois anos, ele utilizou a energia elétrica dessa fonte, sem qualquer registro ou pagamento do real consumo. Em fiscalização, foi constatada a prática de crime, e, antes do recebimento da denúncia, Joaquim quitou o valor da dívida apurado pela companhia de energia elétrica.
Consoante a jurisprudência do STJ, nessa situação hipotética, Joaquim praticou o crime de
A – furto mediante fraude, cuja punibilidade foi extinta com o pagamento do débito antes do oferecimento da denúncia.
B – estelionato, cuja punibilidade foi extinta com o pagamento do débito antes do oferecimento da denúncia.
C – furto simples, cuja punibilidade não foi extinta com o pagamento do débito, apesar de essa circunstância poder caracterizar arrependimento posterior.
D – estelionato, cuja punibilidade não foi extinta com o pagamento do débito, apesar de essa circunstância poder caracterizar arrependimento posterior.
E – furto mediante fraude, cuja punibilidade não foi extinta com o pagamento do débito, apesar de essa circunstância poder caracterizar arrependimento posterior.
FGV – 2021 – PC-RN – Agente e Escrivão
Joyce, apresentando-se como agente de viagens, em 04/02/2021, ofertou ao casal Jane e Marcelo pacote turístico para um cruzeiro. Eles se interessaram pela oferta e efetuaram o pagamento de parte do valor do pacote a título de sinal. Sem qualquer notícia nos dias seguintes, Jane e Marcelo tentaram entrar em contato com Joyce, mas não obtiveram êxito, pois o endereço e o número de telefone constantes do cartão de visitas disponibilizado eram falsos. Diante disso, compareceram à delegacia para registrar a ocorrência.
Considerando o acima narrado e que o dolo inicial de Joyce restou evidenciado, o fato por ela praticado tipifica o crime de:
A – furto simples, de ação penal pública condicionada;
B – estelionato, que depende de representação das vítimas;
C – apropriação indébita, de ação penal pública incondicionada;
D – furto mediante fraude, de ação penal pública incondicionada;
E – estelionato, que independe de representação das vítimas.
Referências bibliográficas
FONTES, Eduardo; HOFFMAN, Henrique (coord.). Carreiras policiais: Delegado Federal. 2. ed. rev., atual. e ampl. Salvador: Editora JusPodivm, 2021.
COSTA, Adriano; FONTES, Eduardo; HOFFMAN, Henrique; SILVA, Márcio. Pacote anticrime. Salvador: Editora JusPodivm, 2020.