O portal de notícias “CNN” publicou em 13/12 que o prefeito da cidade de Borba no Estado do Amazonas, Simão Peixoto e o ex-vereador da cidade, Erineu Alves da Silva, entraram no octógono para resolver suas diferenças na madrugada de sábado (11/12). Segundo a notícia Mirico, como é conhecido Erineu, fazia oposição a Peixoto em seus tempos de vereador. A luta durou três rounds e o prefeito foi considerado vencedor por pontos no final.
Vamos à análise jurídica desse episódio inusitado.
1) Os participantes da luta cometeram crime de lesões corporais recíprocas?
Depende. Vamos examinar algumas teses.
a) Excludente de ilicitude – Exercício Regular de um Direito
A doutrina clássica defende que, nessa hipótese, as lesões corporais recíprocas seriam lícitas, pois amparadas pelo exercício regular de direito (art. 23, inciso III, 2ª parte, CP):
“CP, art. 23. Não há crime quando o agente pratica o fato:
III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.”
Pode causar alguma estranheza, mas a prática de um esporte como o MMA também é considerada exercício regular de um direito, na medida em que o Estado autoriza, regularmente, e até fomenta a prática de esportes, inclusive os mais violentos (v. art. 217, CF; Lei 9.615/98).
Obs1. Para configurar essa excludente de ilicitude são imprescindíveis a proporcionalidade, a indispensabilidade e o conhecimento por parte do agente no sentido de que atua concretizando um direito previsto em lei.
Obs2. Os agentes poderão ser punidos, caso se verifique que agiram em excesso (art. 23, parágrafo único, CP):
“Excesso punível
CP, art. 23 (…) Parágrafo único. O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo.”
A respeito da punição pelo excesso do exercício regular de um direito, Guilherme de Souza Nucci complementa:
“É evidente que atitudes exageradas podem – e devem – merecer punição, pois não teria sentido um jogador de futebol, por exemplo, provocar lesão tão grave, de maneira dolosa, que leve outro à morte, sem que haja qualquer tipo de punição.”
b) Causa supralegal de exclusão da ilicitude – Consentimento do ofendido
Considerando que a incolumidade física é bem jurídico disponível, parte da doutrina sustenta que o consentimento do ofendido funcionaria como uma causa supralegal de excludente da ilicitude.
São requisitos para o consentimento do ofendido:
a) vítima capaz de consentir;
b) consentimento válido;
c) bem jurídico disponível e próprio; e
d) consentimento prévio ou simultâneo à lesão ao bem jurídico;
c) Tipicidade Conglobante
A teoria da tipicidade conglobante foi desenvolvida por Eugenio Raúl Zaffaroni com a proposta de harmonizar os diversos ramos do Direito. Assim, para se concluir pela tipicidade penal da conduta causadora de um resultado, é imprescindível verificar não apenas a subsunção formal fato/tipo e a relevância da lesão ou perigo de lesão, mas também se o comportamento é antinormativo, leia-se, não determinado ou incentivado por qualquer ramo do Direito (tipicidade = tipicidade formal + tipicidade conglobante [tipicidade material + antinormatividade]).
Em outras palavras, a tipicidade não se limita à análise de contrariedade entre o fato e o tipo penal incriminador. É preciso que o fato seja contrário a todo o ordenamento jurídico, englobando não apenas as normas penais, mas também as extrapenais.
Segue uma tabela para melhor compreensão do tema:
GÊNERO | ESPÉCIES |
Tipicidade Penal | Tipicidade Formal (ou legal): mera subsunção do fato à norma penal inciriminadora. |
Tipicidade Conglobante: | Tipicidade Material – real ofensa ou exposição à bem jurídico penalmente relevante. Antinormatividade – a conduta há de ser proibida e não pode ser, de forma alguma, determinada ou fomentada pelo ordenamento jurídico (normas penais e extrapenais). A conduta deve ser contrária ao direito como um todo. |
Consequência lógica dessa teoria é que o estrito cumprimento do dever legal e o exercício regular do direito deixam de excluir a ilicitude e passam a excluir a própria tipicidade, porque são condutas determinadas ou incentivadas pela lei.
No caso em análise, a conduta dos contendores seria atípica, porque agiram no exercício regular de um direito.
d) Teoria da Imputação Objetiva – Risco Permitido
A teoria da imputação objetiva incorporou ao Direito Penal o conceito de causalidade normativa, afastando-se da mera constatação da causalidade física para imputação da conduta ou do resultado ao agente. Por exigir mais do que a simples relação de causa e efeito, a teoria da imputação objetiva tem sido associada ao Direito Penal Quântico, o qual admite certa imprecisão no direito, privilegiando institutos de política criminal em detrimento da dogmática penal.
Claus Roxin, um dos idealizadores dessa teoria, leciona que não se pode imputar objetivamente o resultado aos lutadores, uma vez que o risco advindo da conduta por eles praticada é permitido pelo ordenamento jurídico. As lutas oficiais são consideradas um risco tolerado pela sociedade, assim como o trânsito de veículos e os esportes radicais. Portanto, o fato seria atípico por ausência de nexo normativo.
Como se observa, se não houve excesso por parte dos agentes, não haverá responsabilização criminal por eventuais lesões corporais, podendo o fato ser considerado atípico ou lícito, a depender da tese adotada.
2) Existem comentários de que o prefeito teria usado “dinheiro público” no evento. Neste caso, haveria algum crime?
Caso o prefeito tenha se utilizado de bens ou rendas públicas em proveito próprio ou alheio em relação ao evento poderá responder, em tese, por crime previsto em legislação especial. Vejamos:
“Decreto-Lei 201/67. Art. 1º São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipal, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores:
I – apropriar-se de bens ou rendas públicas, ou desviá-los em proveito próprio ou alheio;
Il – utilizar-se, indevidamente, em proveito próprio ou alheio, de bens, rendas ou serviços públicos.”
3) Foro por prerrogativa de função
O prefeito possui foro por prerrogativa de função no Tribunal de Justiça, conforme expressa previsão constitucional:
“CF/88, artigo 29, X – julgamento do Prefeito perante o Tribunal de Justiça”.
De acordo com a jurisprudência, o Tribunal de Justiça competente para o julgamento do prefeito é o do Estado onde se localiza seu Munícipio, não onde cometeu o crime (STJ, 3ª Seção, CC 120.848-PE).
4) Improbidade administrativa (Lei 8.429/92)
Não se pode olvidar que há independência entre as instâncias penal, civil e administrativa, e que eventual lesão ao erário praticada pelo chefe do Poder Executivo Municipal caracteriza ato ímprobo, nos moldes do art. 10, da Lei 8.429/92 (recentemente alterada pela Lei 14.230/21).
“Lei 8.429/92, Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão dolosa, que enseje, efetiva e comprovadamente, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente:
XI – liberar verba pública sem a estrita observância das normas pertinentes ou influir de qualquer forma para a sua aplicação irregular”.
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